terça-feira, 24 de julho de 2012

As cenas de Júlia


A dor da partida de Júlia fora maior do que eu supunha que poderia ser. Sofri calada durante todo o tempo relembrando cada segundo que passamos juntas e tudo o que ela disse que me fizesse entender o porquê de sua ida.
Revivi cada segundo de nossa existência conjunta, cada tempo gasto vagueando entre pensamentos enquanto encarávamos as estrelas que ela havia colado no teto e que brilhavam no escuro. Júlia em seu jeito menina de ser, era sonhadora como eu nunca havia visto.

Brincava de guerra de dedo e adorava sorvete de salada de frutas. Sorria de tudo e pra tudo, acho que provavelmente era a pessoa mais sorridente que eu conheci na vida.
Se emocionava com tudo e era sentimental demais.
Tinha consciência de sobra e era dessas pessoas que querem salvar o mundo. Fazia sua parte sempre que podia e dizia que um dia ia ter dinheiro e influência o suficiente para fazer a diferença.

Mas era cabeça quente e nunca levava um desaforo pra casa quando se era preciso.

Certo dia esbarramos com um conhecido meu da faculdade. Sempre tentei manter boa relação com as pessoas que convivem comigo em ambiente de estudo e/ou trabalho, então, não foi surpresa André vir falar comigo quando me viu na Praça da Alimentação.
Chegou simpático e sorridente e me cumprimentou com um beijo. Estranhei logo de cara, porque não era do feitio dele agir tão abertamente na frente de estranhos e Júlia, sentada à minha frente, encarava o copo de suco diante de si.
Conversamos um pouco até que ele finalmente me pediu que apresentasse Júlia. Fiquei sem reação. Não sabia como dizer que ela era minha namorada. Até mesmo o termo ‘namorada’ soava estranho aos meus ouvidos e à minha boca, mas antes que eu me manifestasse, Júlia apresentou-se sozinha.

-Sou Júlia, a namorada dela. –eu nunca vira Júlia ser tão seca com alguém, mas ela o fora.

André me fitou por alguns segundos esperando que eu dissesse algo, mas eu estava travada. O normal seria ficar irritada com Júlia por ela tomar as rédeas da situação e me colocar em um situação constrangedora, mas notar a naturalidade com que ela falava sobre nós, me fazia sempre achar que ela agia da forma correta.
Sorri meio sem jeito e concordei com a cabeça. A expressão de André fechou no mesmo instante e eu sabia que havia algo errado. Conhecia André e como ele sabia ser preconceituoso e repugnante quando queria ser, afinal, era um dos motivos dele ser apenas ‘conhecido’ ao invés de colega ou amigo.

-Então você é ‘sapatão’?

O termo agrediu os meus ouvidos e senti a raiva crescer dentro de mim. Fitei Júlia que observava a situação com calma e sem expressar reação. Quis gritar com ele e dizer que ele não entendia nada sobre aquilo, mas eu realmente não sabia como agir e me mantive calada.

-Sapatão 100% ou podemos conversar nós três? –ele deu aquele sorriso malicioso nojento que os homens dão quando imaginam duas mulheres na cama com eles.

Fiquei incrédula diante da situação. Provavelmente ele queria tirar proveito para depois se exibir para os amigos que o esperavam na outra mesa. Queria dizer algo, mas as palavras travaram na garganta.
Júlia já conhecia minha expressão de desespero quando algo estava ‘entalado’ e me conhecia o suficiente para saber que eu provavelmente evitaria brigas e deixaria passar batido, então, como era do feitio dela, ela novamente tomou controle da situação.

-Você acha que agüenta nós duas? –ela o olhou pela primeira vez desde que ele se sentara à mesa.
André sorriu e a encarou. Eu fitei a situação perplexa com as palavras de Júlia.

-Mas é claro que sim. Sou capaz de dar um ‘trato’ tão grande em vocês duas que nunca mais vão ficar com essa coisa de ‘viadagem’ por aí. O problema da maioria das mulheres que viram ‘sapatão’ é a falta de homem de verdade. –André se pronunciou da forma mais repugnante que um homofóbico poderia.

Júlia inclinou-se na direção de André o encarando fixamente nos olhos. Ouvi um murmurinho percorrer a mesa onde os possíveis amigos de André estavam sentados, notavelmente observando o que acontecia na nossa mesa.

Ao ficar bem próxima do rosto de André se insinuando, Júlia sussurrou baixo:
-É por causa de ‘homens de verdade’ como você que eu sou ‘sapatão’. Talvez quando vocês começarem a pensar com a cabeça de cima, consigam mudar minha opinião sexual, até lá, a única coisa que você vai precisar dar um trato é a sua cara.

E então vi Júlia se afastar, pegar o copo de suco e jogar o líquido no rosto de André. A cena ocorreu em segundos, eu me senti inútil vendo-a agir enquanto eu estava paralisada.
Júlia tomou-me pela mão e me puxou. Enquanto saíamos da Praça passamos pela mesa com os amigos de André e enquanto eles riam, Júlia disse:

-O amigo de vocês é gay, um absurdo. Queria nos pagar para fingir que íamos sair com ele para vocês não saberem que ele é viado.
Ela olhou o mais ‘exibido’ da turma e completou:
-A propósito... É de você que ele realmente tá afim.

Ao sairmos ainda pude ouvir gargalhadas e vaias, provavelmente André me mataria no outro dia, mas naquele momento eu só consegui apertar a mão de Júlia, sorrir e pensar:

‘Eu definitivamente, encontrei a melhor garota do mundo!’

Um comentário:

  1. Nossa, que tenso. :/ É verídica essa história? Adorei. Beeijo :*

    Ewerton Lenildo - @Papeldeumlivro
    papeldeumlivro.blogspot.com

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